Artigos Acadêmicos

CADERNOS DE MUSEOLOGIA Nº 5 - 1996 5
APRESENTAÇÃO
RESPOSTAS DE HUGUES DE VARINE ÀS PERGUNTAS DE MÁRIO CHAGAS

1. Como se deu a sua aproximação com as questões museológicas?
No começo dos anos 50, um tio (irmão do meu pai) me fez encontrar um arquivista conhecido que me persuadiu a me preparar para o concurso vestibular à Escola do Louvre, dizendo-me que era muito difícil e permitia uma carreira muito interessante. Nesse momento, eu terminava uma licenciatura em História na Universidade de Paris e não sabia qual orientação profissional tomar. Preparei-me, então, para a Escola do Louvre, fui aprovado (o concurso era, na realidade, muito fácil...) e cursei três anos de formação em vista de uma carreira nos museus. Mas a Escola do Louvre formava essencialmente em História da Arte e, no meu caso, em arqueologia (oriental) e não em museologia ou museografia. Tive somente em três anos duas horas de aulas sobre a legislação francesa dos museus, duas horas sobre diferentes tipos de tipos de vitrinas e duas horas de trabalhos práticos sobre segurança contra incêndio. O resto do tempo era gasto em reconhecer obras de arte através de slides em preto e branco (à excepção da arte egípcia que eram a cores) e em visitar as salas dos museus nacionais (22 horas por semana 8 meses por ano durante 3 anos, uma overdose). Fiz também voluntariamente um estágio de Verão de 3 semanas num museu próximo à minha casa (em Autun) para classificar uma colecção de vasos pré-históricos, porém sem nenhum guia: fiz então uma péssima classificação. Terminei em 1958 meus 3 anos de Escola do Louvre, mas me recusei a fazer a tese final, pois tinha a impressão de não ter aprendido nada e não queria, sobretudo, trabalhar nos museus!
Em seguida só encontrei os problemas de museus quando fui recrutado por Georges - Henri Rivière no ICOM em 1962.

2. Quais os museus ou quais os modelos museológicos que predominavam naquele momento?
Os únicos modelos de museus que eram apresentados pela Escola do Louvre nesse momento eram os museus nacionais: sobretudo o Louvre. mas também o Museu do Monumentos Franceses (Moldes), o Museu Guimet (Arte Oriental). Mas o termo museologia não existia na França.
3. E a sua entrada no ICOM, como aconteceu?
Entrei para o ICOM em Julho de 1962 após ter sido apresentado a G. H. Rivière por Robert Gessain, professor e director-adjunto do Museu do Homem, que havia encontrado uma vez por acaso. Rivière tinha decidido se afastar do ICOM para se dedicar a preparação da nova construção do seu museu de artes e tradições populares. Ele procurava a todo preço um francês e tinha medo que lhe impusessem um museólogo holandês (soube disso muito mais tarde). Este holandês era muito mais qualificado do que eu. Eu tinha 26 anos. tinha saído do serviço militar não falava inglês e não sabia nada dos museus nem franceses, nem outros. Eu havia abandonado meus estudos e havia abandonado igualmente a arqueologia. Não tinha nenhuma experiência em Administração nem no trabalho internacional. Mas eu era francês e recomendado por um grande antropólogo, especialista dos esquimós da Groenlândia.
Comecei a trabalhar ao lado de G.H.Rivière depois do colóquio do ICOM em Neuchatel sobre os problemas dos países em desenvolvimento, depois fui imediatamente imerso no ICOM para a Conferência do ICOM em Haia e Amsterdam no começo de Julho de 1962. Rivière me apresentou por toda a parte como muito experiente, falando correctamente o inglês e tendo um bom conhecimento internacional! O contrário do que eu era na realidade.
Evidentemente, foi lá que eu tive meu primeiro contacto real com a museologia, ou antes, com os grandes directores de museu do mundo, que eram, sobretudo, historiadores de arte, e certamente não
museólogos no sentido actual do termo. Eu não me lembro de se falar em museologia durante a Conferência dos Países-Baixos.
Uma semana após a Conferência, G.H. Rivière abandonou a Secretaria do ICOM durante vários meses, deixando-me desembaraçar com as dezenas de cartas atrasadas, o relatório da Conferência Geral para redigir, o do encontro de Neuchatel, para transformar em livro, etc.
Dois anos mais tarde, Rivière deixava o ICOM definitivamente e eu me tornava director em seu lugar, antes interinamente, depois oficialmente na Conferência Geral de Nova York (1965).
4. Na década de 70, o sr. afirmava que “nenhum museu é total", mas ao mesmo tempo sustentava a ideia do "Museu integral". Estas duas posições não são contraditórias?
Um museu total não é a mesma coisa que um museu global. O museu total seria um museu onde todas as disciplinas, todos os conhecimentos seriam representados sob todos os seus aspectos. Isto seria absurdo. Não poderia haver senão um só museu total no mundo! Seria também um museu onde cada objecto apresentado seria visível em toda a sua complexidade, o que seria igualmente absurdo.
Um museu global é um museu que retoma a frase latina em sua totalidade: “Homo (Museum) sum et nil humanum a me alienum puto”. Evidentemente, um museu realmente global também não existe, mas não é absurdo procurar tal ideal. Um museu global pode se interessar por tudo, nos limites do seu objectivo.
Coloca-se a questão do objectivo, que não é geralmente colocada pelos museólogos. O objectivo do museu parece ir além: ele é feito para a arte, ou para a cultura ou para a carreira do seu director-fundador ou para conservar o património ou atrair os turistas ou porque uma cidade moderna deve ter pelo menos um museu... Valeria mais que o objectivo real, a finalidade do museu fosse objecto de um debate, para que se justificasse por uma utilidade real prioritária, política, a criação, a manutenção e o desenvolvimento desse museu. É uma questão de honestidade intelectual, é também uma questão de sabedoria política.

5. Sabemos que o sr. considera Paulo Freire “um dos melhores pedagogos do mundo actual" e afirma que é "imprescindível conhecer a sua teoria da educação como prática de liberdade". Quando aconteceu o seu primeiro contacto com o ideário de Paulo Freire e até que ponto estas ideias influenciaram a sua prática museológica?
Paulo Freire é o maior pedagogo político de nossa época, porque ele colocou em prática suas ideias, antes de exprimi-las. Os outros pedagogos, mais teóricos do que práticos, procuram, sobretudo, melhorar a eficácia da educação, seu rendimento, talvez a sua democratização, num espírito generoso. Paulo Freire propõe inverter o processo educativo. Considera antes que o objecto da educação, o educando, tem também alguma coisa importante a oferecer, da qual o educador e todos nós temos necessidade. No domínio da cultura, é importante inverter igualmente a relação da oferta e da procura. Todo cidadão, toda comunidade oferece alguma coisa em troca do que o agente cultural pode lhe oferecer. Não deveria então ser mais possível fazer uma política cultural, conceber uma estratégia, utilizar métodos como se fazia antes de Paulo Freire.
Meu encontro com Paulo: em 1 970-1971, com um grupo de amigos franceses e missionários católicos, muito críticos da maneira como se passava a missão (como vontade de converter pagãos a uma religião culturalmente ocidental), a dita cooperação pelo desenvolvimento, tínhamos decidido criar uma organização não-governamental de vocação internacional e composição ecuménica (sobretudo católicos e protestantes), para promover novas formas de cooperação ao desenvolvimento. Foi o Instituto Ecuménico para o Desenvolvimento dos Povos (INODEP), que agora desapareceu mas que foi muito activo durante quase 20 anos na Europa, Africa, Ásia e América Latina, notadamente como suporte à acção comunitária nesse campo. Procuramos desde o começo uma personalidade eminente para presidir esta associação, alguém que poderia não apenas dar orientação ideológica, mas também nos formar na acção. Sugeriram-nos Paulo Freire que era então, no exílio, conselheiro para a educação no Conselho Ecuménico das Igrejas em Genève. Eu o encontrei pela primeira vez indo vê-lo em Genève para lhe propor essa presidência.

Em seguida, durante 3 anos, até 1974, pude trabalhar com ele, sendo eu mesmo responsável pelo sector francês, que assegurava a gestão financeira da organização. E naturalmente, li suas obras em inglês ou francês quando estavam disponíveis. Minha participação no INODEP era absolutamente voluntária e independente do meu trabalho como director do ICOM, mas pude, naturalmente utilizar o que aprendia com Paulo no INODEP no meu trabalho no ICOM.
Lembro muito que a recusa brasileira de autorizar a UNESCO a convocar Paulo em Santiago - l972 não lhe permitiu fazer o que me havia prometido: adaptar sistematicamente a formulação de sua doutrina e de seus métodos à prática museológica e museográfica. Tentei novamente em 1992 em São Paulo, mas ele estava nesse momento ocupado com as suas funções na Prefeitura de São Paulo que ele acabava de deixar. Penso que cabe a nós agora meditar sobre seus textos e suas ideias e adaptá-los aos nossos problemas cada um na sua área de competência. É o que eu tento fazer no meu trabalho pelo desenvolvimento comunitário na França.
6. Ainda na década de 70 o sr. denunciou o carácter dinossáurico do museu tradicional, indicando a grande defasagem dessas instituições em relação às questões sociais. Como o sr. compreende esse problema 20 anos depois?
Para mim os museus tradicionais não são mais dinossaurios, pois eles mudaram, quer dizer trocaram de natureza. Eles eram supostamente instituições culturais e se tornaram:
- na maioria, armadilhas para turistas e grupos escolares (O Louvre recebe cerca de 60% de turistas e 25% de escolares),
- alguns, museus novos, ou antes renovados, abertos para novas funções.
Então ao contrário dos dinossauros, não vão desaparecer, mas vão constituir novas categorias (ver também o nº. 9). Em todo o caso, a definição puramente funcional do ICOM não convém mais, pois ela não menciona os objectivos do museu. Esta definição não é museológica, ela é essencial museográfica. Creio ter resumido bastante esta problemática na minha síntese da Conferência do ICOM em Quebec em 1992.
7. O fracasso de algumas experiências de Ecomuseus estão a indicar também o fracasso das novas abordagens museológicas em comparação com os museus denominados tradicionais?
O que se chamava fracasso de um museu comunitário (que se chama ecomuseu ou não) deveria levar outros nomes, como eu aprendi vivendo a história do ecomuseu da comunidade Le Creusot-Montceau, na França. Há várias possibilidades de terminar o processo vivo de construção de um museu comunitário:
- o museu desaparece após ter preenchido sua função de mobilização e de dinamização da comunidade. Pode ser substituído por outra coisa: uma acção, política, patrimonial, educativa, etc..., levada por outros meios.
- o museu se institucionaliza tornando-se um museu clássico, emanado da comunidade na origem, mas agora estabelecimento de difusão e de acção cultural, a partir de uma colecção e das actividades comuns dos museus.
- o museu se transforma em um outro processo, igualmente de natureza museológica, mas muito diferente porque adaptado a uma nova geração, a uma comunidade diferente daquela que havia criado o primeiro museu 10 ou 20 anos antes. É um novo avatar, no sentido hindu do termo.
0 que pode ser considerado como um fracasso é a procura de uma nova museologia sob o nome de Ecomuseu ou de Ecomuseologia. A confusão em torno da palavra, a moda que fez com que centenas de museus locais ou industriais se criassem com este nome, quando nada tinham de comunitário, a definição ambígua de G.H. Rivière, a utilização abusiva do museu da comunidade Le Creusot-Montceau como modelo (quando não se tratava senão de um ecomuseu no começo e ainda menos de um modelo) tudo isto faz com que a tentativa de alguns de identificar a nova museologia com essa palavra seja um erro.

8 . Anunciaram-se o fim da utopia, o fim da ideologia, o fim da história e até mesmo o fim do museu. Como o sr. vê essa questão?
Este "fim de tudo" é a forma mais acabada do milenarismo. Nossos intelectuais estão tão perplexos quanto as massas supersticiosas do ano 1000. Estamos em realidade no começo de alguma coisa e não vamos nos demitir antes de começar a progredir de novo. Em que sentido não sei, mas é isto que é divertido.
É também uma pretensão dos velhos países espoliadores que crêem que seu cansaço é também do mundo inteiro, porque eles não querem ver os povos jovens que vêm empurrá-los para tomar seu lugar.
Em contrapartida, estamos talvez no fim de um ciclo de dominação e de exploração da maior parte do mundo pela menor e isso é muito bom.
9. Para finalizar, o sr. poderia indicar, em sua opinião, quais as perspectivas museológicas para o devir?
Penso, pessoalmente, não como museólogo, mas como actor de desenvolvimento local e militante da acção comunitárias que o museu pode e deve escolher entre três formas principais:
- o museu-espectáculo, destinado a públicos cativos: turistas, meios cultos, escolares em grupos organizados e guiados. Esses museus serão cada vez maiores, cada vez mais dispendiosos, cada vez mais visitados, quer dizer “consumidos”. Serão supermercados da cultura oficial. Ao final, serão todos parecidos.
- o museu-colecção, destinado às pesquisas avançadas, às produções complexas, a públicos mais ou menos especializados, para os quais a colecção é a primeira justificativa. Esses museus atrairão cada vez mais públicos ''inteligentes'', utilizarão métodos de comunicação sofisticados, abrir-se-ão tanto quanto possível às comunidades de geometrias diferentes. Serão todos únicos e criarão entre eles redes de cooperação análogas às redes universitárias actuais.
- o museu-comunitário, saído da sua comunidade e cobrindo o conjunto do seu território, com vocação global ou "integral", processo vivo que implica a população e não se preocupa com um público, que é ao mesmo tempo o centro e a periferia. A vida desses museus será curta ou longa, alguns nem se chamarão museus, mas todos seguirão os princípios da nova museologia (Santiago, Quebec, Caracas, etc.) no seu espírito ou na sua escrita (teoria).
Hugues de Varine
23/11/95